Conversar com Marieta Severo foi um dos pontos altos da minha carreira. Além de ter feito parte do meu crescimento como indivíduo através de seus personagens icônicos, a atriz tem um propósito muito claro sobre seu fazer artístico – que é transformar o modo de ver de seus espectadores: “Não faço nada só por fazer. Quero tocar o ser humano de forma positiva e ampliar seus limites”, revela. 

Marieta já ocupou palco de teatros, horários nobres na televisão e salas de cinema. Nesse processo, se construiu, se descobriu e se satisfez por meio de roteiros e aprendizados que cada papel aponta. “Levo algo das personagens e também deixo um pouco de mim porque o único material que tenho para construí-las sou eu mesma. Essa é uma troca absolutamente mágica e o ator só sabe viver assim.”

A atriz é a protagonista do longa-metragem “Aos nossos filhos”, uma história criada por Laura Castro que chega às telas com a direção de Maria de Medeiros. A narrativa acompanha Vera (Marieta Severo), coordenadora de uma ONG que cuida de crianças soropositivas e precisa lidar com suas próprias contradições diante da escolha da filha, Tânia (Laura Castro), que deseja ter um bebê com sua parceira. A história reflete, ainda, sobre as diferenças geracionais entre pais e filhos, adoção, inseminação artificial e a violência policial – ilustrando, portanto, as principais discussões do Brasil atual.

“Vera foi uma mulher que lutou contra a ditadura e foi barbaramente torturada. Aconteceu com ela algo que aconteceu com várias mulheres reais, que é ter seus filhos arrancados dos braços. Há um depoimento no filme em que o torturador diz que ‘filho de comunista não merece viver’ e era assim mesmo que acontecia”, conta. “O mais terrível da minha geração é ver essas ideias, que a gente achou que tinham sido abolidas, voltarem com alguma força.”

Ao longo da ligação, é possível sentir sua necessidade em criticar os rumos que o país tem tomado e as decisões do governo atual, que transforma livro em armas e incentiva a violência. “A gente combate isso elegendo pessoas que vão mudar esse tipo de lei. Enquanto isso, matamos crianças e armamos uma população que se trucida. Onde que isso é bom? Falaram que o Lula vai transformar clube de tiro em biblioteca. Tomara!”, diz. Abaixo, você confere nosso bate-papo completo:

“O mais terrível da minha geração é ver ideias que a gente achou que tinham sido abolidas voltarem com alguma força. A gente combate isso elegendo pessoas que vão mudar a lei. Falaram que o Lula vai transformar clube de tiro em biblioteca. Tomara!”

Como suas personagens te construíram ao longo da carreira? Qual elemento de Marieta você deixa em cada uma?

Foto: Jotave

Elas me deram tudo! O ator se constrói, se informa, descobre e se satisfaz através dos caminhos que os personagens apontam. Talvez eu não fosse me aprofundar sobre a situação no Líbano, por exemplo, se não fosse minha personagem em Incêndios. Posso dizer que o conhecimento e o autoconhecimento que adquiri foram por meio dos roteiros. Virei uma aficcionada por Mozart a partir da mulher dele, que interpretei em uma peça. Mergulhei naquele assunto o máximo possível e, quando acabou, fui para outra coisa, mas passei a ouvir suas músicas o tempo todo.

Levo algo das personagens e também deixo um pouco de mim porque o único material que tenho para construí-las sou eu mesma. Tenho um material informativo por fora e um material formativo dentro. Formo o personagem a partir do meu ponto de vista, do que me tocou e do que quero dizer sobre cada um para as pessoas. Essa é uma troca absolutamente mágica – e o ator só sabe viver assim. 

Em Aos Nossos Filhos, Vera é uma guerrilheira que lutou contra a ditadura e hoje cuida de uma ONG de crianças soropositivas. Mas algo muda quando ela se depara com um conflito sobre a sexualidade da própria filha. Em um contexto de repressão intensa e direitos fundamentais bloqueados, como ficava o espaço para lidar com as questões de gênero e do HIV?

Num contexto de repressão, não há espaço para lidar com nada que seja grandioso ou de progresso dentro do ser humano e da sociedade. É um espaço terrível, o pior que pode existir. A repressão é mentirosa em relação a preconceitos porque ela nega a própria essência humana, os desejos e as vontades. Sou de uma geração que viveu a ditadura e posso dizer que essa é a pior maneira de um país desenvolver seus potenciais e o que há de melhor e mais criativo. 

Para mim, é uma pérola que esse filme seja lançado agora porque, nesses meses que antecedem as eleições, estamos vivendo um perigo iminente. Vemos as pessoas abraçando o pior regime que existe, que é o ditatorial. Meu grande sonho é que a produção esclareça para algumas pessoas o que foi realmente essa época: além dos problemas econômicos e corrupção, havia o predomínio da violência. Vera foi uma mulher que lutou contra a ditadura e foi barbaramente torturada. Aconteceu com ela algo que aconteceu com várias mulheres reais, que é ter seus filhos arrancados dos braços. Há um depoimento no filme em que o torturador diz que ‘filho de comunista não merece viver’ e era assim mesmo que acontecia. O mais terrível da minha geração é ver essas ideias que a gente achou que tinham sido abolidas, voltarem com alguma força. 

“Sou de uma geração que viveu a ditadura e posso dizer que essa é a pior maneira de um país desenvolver seus potenciais e o que há de melhor e mais criativo”

Passados tantos anos e vivendo uma liberdade maior, nos deparamos com conflitos geracionais para enfrentar essas questões. Você, que está com 75 anos, enxerga na idade um obstáculo para olhar para questões como essa?

Nós vivemos numa sociedade muito conservadora. Eu faço parte de uma camada da minha geração que soube lidar com esses preconceitos muito rapidamente, por isso posso mostrar a Vera de maneira muito crítica. Nós notamos que o território de preconceitos é difícil de lidar e está arraigado na sociedade. A personagem é muito progressista para algumas coisas, mas quando a filha resolve ter um filho com sua esposa, ela se atrapalha toda e acaba emperrando. Esse bastão da empatia e do respeito tem que ir passando de geração para geração e é possível perceber ao longo do filme que Vera não soube fazer isso.  

Foto: Jotave

Vera está tão ligada à política que não se deu conta que gênero, sexualidade e maternidade também fazem parte da luta por direitos. Como conscientizar as novas gerações de que todos esses assuntos também são política?

Tudo é política. No Teatro Poeira, o que encerra as peças é um poema que fala exatamente sobre isso. Os seus genes tem um passado político, sua pele é política, seus olhos têm um aspecto político, o que você diz tem um sentido político e o que você silencia também. A gente só avança nas ideias libertárias se avançar politicamente, se elas virarem direitos assumidos. Acho que essa juventude de agora consegue entender melhor questões que antes não eram tão discutidas, como feminismo, diversidade e direitos humanos até – isso é muito positivo. 

“Tudo é política. A gente só avança nas ideias libertárias se avançar politicamente, se elas virarem direitos assumidos. Acho que essa juventude de agora consegue entender melhor questões que antes não eram tão discutidas”

Em um desses momentos, Vera diz “eu faço revolução onde posso”. De que maneira você faz revolução?

Não tenho a pretensão de dizer que faço revolução, mas minha poeirinha de transformação cultural está muito presente nas escolhas que sempre fiz na minha profissão, nos filmes, nas peças, até dos trabalhos de televisão. Nunca fiz nada que não quisesse fazer ou que não soubesse o porquê estava fazendo. Quero tocar o ser humano de forma positiva e ampliar seus limites. 

Mais do que tudo, também há o Teatro Poeira, que faço junto com Andrea Beltrão. Lá, nós colocamos todas as poeirinhas de transformação porque fazemos um trabalho muito rigoroso para entender a força do que vamos transmitir para as pessoas.

Muito tem se falado sobre etarismo, principalmente na televisão. Mulheres jovens interpretam personagens mais velhas e até mães de pessoas de idade parecida. Como esse preconceito é reforçado pelo machismo?

O machismo sempre atua no controle e na limitação dos espaços da mulher, seja na idade que for. E as mulheres estão cada vez mais atentas a isso. Todas essas discussões precisam ser transformadas em leis e movimentação política. Quanto mais mulheres progressistas tivermos nesse meio, mais positivo é. Agora nas eleições precisamos prestar muita atenção nisso. É por esse motivo que o governo fascista tem tanto medo da arte e da cultura. Eles sempre tentam nos diminuir, cercear nossos espaços e nos censurar. Mas esse é um lugar de transformação, das novas ideias, dos novos caminhos e dos questionamentos.

“Quanto mais mulheres progressistas tivermos, mais positivo é. Agora nas eleições precisamos prestar muita atenção. É por isso que o governo fascista tem tanto medo da arte e da cultura. Eles sempre tentam nos diminuir, cercear nossos espaços e nos censurar”

Há um momento marcante logo no começo do filme quando uma das crianças do abrigo pede uma arma. E um dos motes do governo atual é armar a população. Como combater essa lógica de transformar livros em armas?

A gente combate elegendo pessoas que vão mudar esse tipo de lei porque isso é uma das piores coisas que estão acontecendo nesse país. Não há quem me diga que arma é defesa. Esse governo adora se espelhar nos Estados Unidos, mas só nos pontos negativos. O Brasil vê o que não deu certo por lá e imita. Enquanto isso, matamos crianças e armamos uma população que se trucida. Onde que isso é bom? Falaram que o Lula vai transformar clube de tiro em biblioteca, tomara!

Nos últimos anos, você e Aderbal viveram experiências um tanto preocupantes de saúde. Além disso, a questão da morte esteve mais presente do que nunca por conta da pandemia. Qual é o espaço que a finitude da vida ocupa na sua cabeça?

A pandemia colocou isso na nossa vida de uma maneira muito concreta. Perdi amigos e pessoas muito próximas. A morte entrou de uma maneira avassaladora na casa de todos nós. E ter um governo que debochou e não soube lidar com isso foi uma das maiores crueldades que um país pode passar. O que passei com o AVC do Aderbal mostrou um limite não de morte, mas de impossibilidade de vida plena em vida. Isso criou uma constância dessa ideia no meu cotidiano. Por eu lidar de perto com essa situação diariamente, posso dizer que a ideia da morte se tornou mais presente e, por eu ser uma pessoa muito organizada, já estou pensando e planejando coisas pro fim. 

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*com informações do Terra / Entrevista: Beatriz Lourenço