Cagar. Fazer o número dois, passar um fax, chapiscar a porcelana, soltar um barro, cortar o rabo do macaco. Defecar. Cocô, bosta, merda, esterco, excremento, estrume, fezes. Algumas dessas palavras e expressões causariam frouxos de riso incontroláveis em qualquer garoto de 13 anos de idade. Por outro lado, causariam espanto em muita senhorinha de 80. Algumas delas nos remetem a coisas necessárias para adubar e gerar vidas. Outras, quando ditas em um momento errado, podem incendiar uma discussão e destruir amizades. E há as que podem ao mesmo tempo ser usadas para demonstrar empatia, quando, por exemplo, seu amigo deixa o celular cair no chão, rachando a tela de ponta a ponta, e você diz “Putz, que merda…”, ou também para demonstrar ira quando o celular que cai e tem a tela quebrada é na verdade o seu próprio, e você solta um “MERDA!” involuntário e instantâneo.
 
Independentemente de serem consideradas insultos ou de serem formas aceitáveis em uma conversa mais formal, todas essas palavras e expressões se originam daquela que é uma das coisas mais universais do mundo, algo que, apesar de ser tão natural, é muitas vezes tratado como enorme tabu; tabu do qual, porém, é impossível nos desvencilhar. Elas se referem a algo tão necessário e importante quanto constrangedor, algo que quando vem de supetão traz junto um nervosismo e uma ansiedade que só quem já passou por momentos como este pode descrever; algo que nos faz suar frio e que nos transforma em verdadeiros atletas correndo por nossas vidas quando vem sem avisar, tomando controle absoluto de nossos pensamentos, mas que também nos causa medo e preocupação quando começa a demorar demais a aparecer. Estamos falando de algo que nos une uns aos outros sem distinguir cor, raça, credo, idade, nacionalidade, posição social, opiniões políticas, gênero ou orientação sexual. E digo mais! Estou falando de algo que, assim como a necessidade de respirar e de se alimentar, é uma das coisas mais imprescindíveis na natureza, uma das forças que nos movem, e que nos definem não apenas como seres humanos, mas como seres vivos: a vontade de cagar.
 
O fato é que todos nós temos uma história embaraçosa – mesmo que nunca a tenhamos contado à ninguém – de uma diarreia fulminante em algum lugar inconveniente, ou de uma forte dor de barriga em um momento inoportuno. A minha é apenas mais uma dessas histórias escatológicas que começa sem muito alarde e acaba dando… merda. A história se passa em meados de novembro de 2016, em um safári noturno que fiz pelo Parque Nacional South Luangwa, no leste da Zâmbia, perto da fronteira com o Malaui, e a poucas horas de Chipata, cidade onde eu morava e trabalhava na época.
 
Era a minha segunda vez em um safári. A primeira tinha sido na África do Sul, mas não tinha sido exatamente como eu imaginava que seria, apesar de ter sido uma experiência muito divertida, de qualquer maneira. Daquela vez a gente foi numa van fechada, e por mais que tivesse sido incrível avistar animais dos mais diferentes tipos em seu habitat natural, eu ainda não tinha conseguido sentir a sensação de estar de fato no meio da natureza. Dessa vez seria diferente. Eu iria em um jipe aberto. Seria finalmente um safári da maneira que eu imaginava que um safári seria, com aquela pequena adrenalina ao pensar que a qualquer momento um animal feroz poderia pular para dentro do carro e nos atacar.

Poesia e filosofia numa hora dessa

Nem mesmo o lugar onde eu estava ficando tinha tanta proteção. A namorada do meu chefe trabalhava em uma pousada dentro do parque chamada Zikomo Lodge, e nos conseguiu um desconto na hospedagem e no passeio. A pousada, assim como outras ali, não tinha muros ou cercas separando-a dos animais; havia no máximo um barranco baixo que dificultava a vida de alguns animais mais bem aventurados. Ainda assim ficávamos a uma distância dos animais curta o suficiente para fazer tremer as pernas de turistas mais medrosos.
 
Verdade seja dita, esse medo nem era tão irracional assim. Eu ouvi histórias do meu próprio chefe de quando acordou, abriu a janela e viu um elefante imenso se alimentando a poucos metros de distância de seu chalé, ou de quando teve que ficar trancado por algumas horas dentro do chalé porque um leão curioso havia decidido fazer uma visita ao lodge. Claro, apesar de serem histórias reais, tanto a atividade que eu faria quanto o lugar onde me hospedaria eram mais seguros do que estou descrevendo aqui. A grande maioria dos acidentes mais graves – e até mortais – que acontecem nesses tipos de parques e atividades se dão por descuido de turistas desavisados e erro humano de turistas mais arrogantes que subestimam os perigos desses lugares e ousam desrespeitar as normas de segurança.
 
Os guias que nos levariam eram bem experientes e treinados, e eles faziam aquilo há vários anos; conheciam o lugar como a palma de suas mãos e sabiam como respeitar e se portar perto daquelas criaturas de uma maneira a garantir a segurança de quem estava no carro e sem perturbar a tranquilidade da natureza e da vida selvagem. Guardas noturnos armados protegiam o acampamento e estavam sempre atentos ao menor sinal de algum perigo maior por ali. Assim que chegamos já fui avisado de que não era aconselhável ficar andando sozinho à noite pelo acampamento, e que depois de um certo horário as luzes todas se apagavam e o melhor a fazer era fechar nossos chalés e barracas bem fechados e ir dormir mesmo.
 
Nada disso me assustava, e eu estava bastante animado para os passeios que faria nos próximos dois dias. Chegamos no início da tarde ao local. Depois de fazer meu check-in e montar a barraca na qual dormiria – pelo menos a princípio, pois depois, como não havia tanta gente ali, acabei sendo transferido para meu próprio chalé pelo mesmo preço –, dei um pulo na piscina da pousada enquanto esperava o meu passeio que sairia logo mais, duas horas antes do pôr do sol. Enquanto eu me refrescava do intenso calor africano nas águas geladas da piscina, lá longe eu já começava a avistar alguns animais.
 
Por volta das 16h eu já estava entrando no carro que me levaria para o meu primeiro passeio do final de semana. Um jipe aberto, com lugar para umas 10 pessoas além do motorista e do guia, mas que estava bem mais vazio que isso. Meu chefe e sua namorada não participariam naquela noite, então os únicos turistas além de mim eram um casal mais velho que tinha vindo da capital do país, Lusaka, para conhecer o parque pela primeira vez. O passeio duraria por volta de 4 horas no total, sendo 2 horas com a luz do dia e mais 2horas na escuridão da noite, com uma pequena pausa no meio para aproveitar um belo pôr do sol zambiano do meio da savana com direito a uma bebida e aperitivos
 
As primeiras 2 horas de passeio foram tranquilas e agradáveis. Encontramos diversas espécies de pássaros. Confesso que nessa parte eu nem prestava muita atenção. Nunca me interessei tanto pelas aves, pelo menos não pela sua aparência física, provavelmente devido à minha inabilidade de perceber, e apreciar, suas diferenças. Para mim, as aves de pequeno porte, acho que justamente por serem pequenas, eram a mesma coisa. Isso muda um pouco quando penso em aves maiores e/ou com algumas características mais facilmente notáveis, como as águias, os flamingos, os pavões e os pinguins. A minha admiração por essas criaturas, na verdade sempre esteve num campo mais abstrato, mais do que na sua beleza exterior. Sua habilidade de voar as transforma em seres verdadeiramente livres, com uma facilidade para transpor barreiras e expandir seus limites, com a possibilidade de visitar terras longínquas e lugares de difícil acesso, sem que nada ou ninguém os impeçam. Esse meu desejo contínuo por liberdade é que gera esse sentimento de admiração pelos pássaros. E inveja. Admiração e inveja. Portanto, nos momentos que parávamos para ver alguma nova espécie de pássaro, eu não me importava muito com o nome ou com as curiosidades sobre o animal que iam sendo contadas pelo guia; na maioria das vezes eu estava mais ocupado perdido nos meus próprios pensamentos admirando e invejando seus movimentos.
 
O que me chamava a atenção mesmo eram os animais de grande porte. As girafas com sua coloração laranja, repletas de manchas marrons pelo corpo, e seus pescoços compridíssimos e que pareciam se esticar e se esticar cada vez mais, permitindo-lhes alcançar até os pontos mais altos das árvores; os elefantes gordos, corpulentos, enormes, que balançavam suas trombas longas para lá e para cá enquanto caminhavam de maneira imponente e majestosa, e que pareciam fazer a Terra toda tremer a cada passo que davam; os hipopótamos que se refrescavam no rio, quase inteiramente submersos, apenas com seus olhinhos e narizes para fora, passando despercebidos por qualquer um que não estivesse atento aos detalhes, mas que quando decidiam sair da água revelavam sua silhueta gigantesca, quase tão gordos, corpulentos e enormes como os próprios elefantes.
 
Era a primeira vez que via girafas tão de perto assim, e fiquei encantado com sua elegância. Elas geralmente se encontravam isoladas, no máximo em pares, ao contrário dos elefantes, que sempre surgiam em grupos maiores, parecendo uma grande frota de caminhões no meio da floresta. Mesmo os menores elefantes pareciam que conseguiriam te engolir em uma só bocada. Já os hipopótamos eu os vi aos montes, em um rio, justamente onde paramos para assistir ao pôr do sol. E que pôr do sol! A cor laranja do sol de fim de tarde se misturava ao azul do céu e ao verde das árvores em uma grande aquarela natural. O fato de estar no meio da natureza, e rodeado por tantos animais incríveis e livres, me fez sentir igualmente livre e com uma sensação de estar tão conectado à natureza como nunca estivera antes.
 
Além desses, vi ainda inúmeros veados e cervos saltitando por todos os lados, uma manada com dezenas e dezenas de búfalos correndo como se estivessem fugindo de algo, uma coruja virando sua cabeça 360 graus, parecendo a menina do “O Exorcista”, e, claro, leões. Ah, os leões… Me atrevo a dizer que é quase uma unanimidade universal a admiração por essas criaturas. Um dos filmes mais famosos da minha infância foi exatamente sobre um leão que era tratado como o mais forte e poderoso entre todos os outros animais, e que reinava tudo aquilo que o Sol tocava: “O Rei Leão”. Cresci ouvindo que os leões são os “reis” da selva, a definição de majestade com suas belas e volumosas jubas douradas, e um dos maiores e mais perigosos predadores do planeta. Esse título sozinho já os transforma não só em principal atração turística dos safáris por todo o continente, atraindo pessoas de todos os cantos do mundo para os confins da África subsaariana, mas também também em grande alvo de caçadores que, com suas maletas cheias de dinheiro em uma mão e rifles na outra, desejam abater de forma covarde criaturas tão belas, e apenas por diversão, pelo esporte, para provar a si mesmos o quão poderosos são. Esse título sozinho faz com que safáris se transformem em verdadeiras caçadas figurativas por estes animais, nas quais o único tiro dado, também de maneira figurativa, é o de câmeras fotográficas.
 
O mais famoso dos “Big Five” era também um dos que eu mais queria encontrar. Esse termo, inclusive, foi cunhado no século XIX e concedido a cinco espécies de animais: os leões, os leopardos, os rinocerontes, os elefantes e os búfalos. E, ao contrário do que a palavra “big” deixa entender, não foi dado devido ao tamanho destes animais e muito menos devido à sua popularidade, mas justamente à dificuldade e ao perigo que ofereciam aos caçadores mais corajosos que se atreviam, e se arriscavam, a rastreá-los e a caçá-los a pé. Destes, os únicos que não consegui encontrar em qualquer dos safáris que fiz até o momento em que escrevo essa história foram os leopardos e os rinocerontes. Creio que esse já é um bom motivo para voltar àquele continente.
 
Mas os leões, sim, eu consegui ver. A primeira vez que vi foi ainda na África do Sul. Naquele passeio consegui avistar, de longe, um leão e duas leoas se alimentando de uma carcaça de búfalo dentro da mata, um pouco escondidos por entre as árvores, e outro ao lado da estrada sozinho, a céu aberto, dormindo um sono de causar inveja, sem parecer estar com medo ou preocupado com nada. Os leões, inclusive, chegam a dormir 18, 20 horas por dia! Esse é o sonho de muita gente. Dessa vez, eu novamente consegui encontrá-los, em dois momentos diferentes, em dois passeios diferentes, para ser mais exato.

Algo muito estranho no estômago

O passeio que fiz no dia seguinte pela manhã foi o melhor e mais tranquilo. Encontramos uma alcatéia de leões descansando. Não havia machos adultos, apenas algumas fêmeas e vários filhotes. Ficamos um bom tempo por ali tirando fotos e curtindo o momento, apreciando e filmando aquela cena das mamães leoas brincando com seus filhotinhos. Elas pareciam nem perceber que havia dois jipes grandes parados. Era um contraste de sentimentos. Enquanto, do nosso lado, estávamos encantados por aqueles animais, com um sentimento de curiosidade, e com os olhos bem fixos neles, atentos a cada detalhe, do lado deles o sentimento parecia ser de indiferença, e eles nos ignoravam como se fôssemos um animal qualquer que não merecia sua atenção. Em nenhum momento me senti em perigo. Foi um momento bem sossegado, e que serviu para compensar a péssima experiência da noite anterior.
 
Voltando ao dia anterior e portanto à ordem cronológica da história, logo depois de fazer nossa pausa para ver o pôr do sol, voltamos para o jipe e seguimos em frente para mais duas horas de passeio. Enquanto a claridade caía no horizonte, o céu começou a escurecer com grande velocidade, e em pouco tempo os últimos raios de sol deram espaço à luz da lua. Até aquele momento, nada de anormal havia acontecido, mas em pouco tempo isso mudaria. Logo recebemos uma dica de outros guias: haviam encontrado um leopardo não muito longe de onde estávamos. Isso é algo muito comum em safaris; os guias se comunicam por walkie-talkies durante todo o passeio, e avisam uns aos outros sempre que encontram animais interessantes e mais raros ou difíceis de encontrar, principalmente os grandes felinos. Partimos então em direção a ele.
 
Nesse instante senti algo estranho no meu estômago. Um pequeno movimento, uma pequena dor, mas nada que me causasse muito espanto. Imaginei que eram apenas gases. Afinal, não me recordava de ter comido nada diferente mais cedo, naquele dia, e nem no dia anterior. Não dei moral para aquilo, apenas me ajeitei um pouco e, como estávamos em lugar aberto, esperei um momento de mais barulho e soltei um pum. Se fedesse, seria fácil encontrar um culpado no meio de tantos animais por ali. Felizmente não foi nada barulhento. Foi apenas um vapor forte e quente. Parecia que eu estava literalmente com fogo no cu. Fedeu. Bastante. Como estávamos em movimento, logo o cheiro passou. “Estou podre”, pensei. E vida que segue. Minha atenção antes disso estava 100% no safári, em seguida mudou para 99% no safári e o 1% restante nessa dor de barriga. Eu mal imaginava que aquele era apenas o início de um período de quase uma hora de muita tensão e sofrimento.
 
Chegamos à área onde o leopardo deveria estar. Mas estava tudo completamente escuro, seria impossível ver algo ali. A única luz que tínhamos, além da luz da lua, era a de uma lanterna enorme que o guia carregava e a dos faróis do carro. Avançávamos com calma, tentando não assustar e afugentar nenhum animal que pudesse estar por ali. Apontávamos a lanterna para todos os cantos, com olhos e ouvidos bem atentos ao menor sinal de movimento. Era como procurar uma agulha num palheiro. Em um pequeno momento de sorte, conseguimos avistar algo que parecia ser um leopardo, bem de longe. Na verdade, tava tão longe que quase nem dava para saber direito o que era. Eu mesmo só percebi que era de fato o animal que procurávamos quando o guia confirmou que era. Porém, em poucos segundos ele desapareceu novamente, e nunca mais voltamos a vê-lo. Enquanto isso, a minha dor de barriga começava aos poucos a aumentar. Minha atenção era de 95% no safári e 5% na dor.

Será apenas um pum?

Recebemos um novo chamado no rádio, agora sobre uma alcatéia de leões, e rapidamente o motorista manobrou o carro em um pequeno espaço no meio da mata para seguir em sua direção. Eu estava animado, afinal não era todo dia que eu tinha a chance de ver esses animais tão de perto, e fazer isso à noite dava um toque ainda mais especial, mais aventuresco. Durante o percurso, minha dor de barriga continuava a aumentar, e com ela minha aflição. Ainda assim, tentava não dar tanta moral. “Consigo segurar até o fim do passeio”, eu pensava comigo mesmo, ou pelo menos tentava me convencer de que conseguiria. “Não é possível que algo pior aconteça no meio desse safári. Tantos dias à toa em casa para ter diarreia e isso vai acontecer logo hoje? Logo aqui? No meio da floresta? Não, sem chance!”, eu dizia a mim mesmo, tentando me manter otimista como sempre. Mas não da para negar que minha preocupação também aumentava aos poucos. Minha atenção agora era de 90% no safári e 10% na dor.
 
Depois de alguns minutos, o guia levantou e nos avisou que estávamos perto. Nesse instante, meio que por desencargo de consciência, eu perguntei a ele se tinha alguma chance de haver algum banheiro por ali. Apesar de ter quase certeza de qual seria sua resposta, considerei a possibilidade de existir algum acampamento por ali, ou talvez uma espécie de guarita onde guardas florestais poderiam ficar, não sei, só sei que não custava nada perguntar. Como era de se esperar, não havia nada ali por perto, apenas no nosso próprio acampamento mesmo. É, não tinha jeito, agora já não era nem uma questão de escolha própria, eu teria que esperar até o final do passeio. Perguntei novamente ao o guia que horas eram, para ter uma noção de quanto tempo mais de safári nós teríamos, e pela sua resposta estimei que ficaríamos ali por mais uma hora, uma hora e meia, mais ou menos, além de mais uns vinte a trinta minutos para o trajeto de volta. Minha atenção foi para 80% no safári e 20% na dor.
 
A dor ainda estava suportável, porém à medida que ela crescia, crescia também o meio receio em soltar outro pum. Acredito que todo mundo já tenha passado por alguma situação semelhante, em que tenha ficado nessa dúvida: “Será que, se eu forçar, vem só um pum?” Muitas vezes conseguimos dizer quando é realmente só um pum ou quando é algo maior. Fazemos uma leitura geral do nosso corpo, consideramos as circunstâncias, calculamos as probabilidades, avaliamos o risco de ser algo a mais, e, por fim, decidimos se vale ou não a pena arriscar. O medo de nos cagarmos é grande. É como se estivéssemos jogando pôquer contra o nosso próprio corpo, e temos que analisar se é apenas um blefe, ou bufa, ou não, e se compensa ou não pagar para ver. É uma grande aposta anal. Naquele momento eu conclui que já não compensava mais; o resultado seria desastroso. Meu corpo estava na iminência de pedir all in, ou melhor, all out. E foi com esse pensamento que chegamos ao nosso destino.
 
Começamos a diminuir mais a nossa velocidade, que já não estava muito alta, à medida que fomos nos aproximando dos animais. Não éramos os únicos ali. Certamente outros guias tinham sido avisados sobre aquele grupo de felinos. Havia mais dois carros parecidos com o nosso, ambos em absoluto silêncio e com as luzes apagadas. Paramos a uma distância assustadoramente curta dos leões. Leoas e seus filhotes, na verdade; não havia nenhum macho adulto naquele grupo. O motorista então desligou o carro, e com ele os faróis, apagando assim umas das duas únicas fontes de luz que tínhamos. Não queríamos assustá-los para que não fugissem, ou pior ainda, para que não nos atacassem. Nosso carro era todo aberto, e nem o guia nem o motorista portavam qualquer tipo de arma com tranquilizante para o caso de alguma daquelas feras decidir de fato nos atacar. E estava muito escuro. Um breu. Uma escuridão dessas que você não encontra em cidades grandes, nem nos becos mais obscuros; uma escuridão na qual você não consegue enxergar um palmo à sua frente. Se o pior acontecesse, nós não conseguiríamos ver nem mesmo por onde estaríamos sendo atacados, ou pra onde correr. Na verdade, correr seria inútil. Todo cuidado era pouco ali. Em momentos como esse é imprescindível saber respeitar a natureza, mas se você seguir as dicas de segurança e fizer tudo certo e com cautela, não haverá nenhum problema. Felizmente estávamos com guias muito experientes e preparados.
 
O guia, de maneira tranquila, sacou sua lanterna e a apontou diretamente na cara de uma das leoas, que parecia estar dormindo. Perguntei se aquilo não era perigoso, e se não poderia ser interpretado por ela como uma ameaça, e ele disse que não, no geral os animais estavam acostumados com essa atenção e com as luzes vindas dos carros de safári. Contanto que não avançássemos sobre o grupo, eles também não avançariam contra nós. Ele começou então a mover o fecho de luz de maneira lenta e contínua, com movimentos precisos, contornando toda a área em que os leões estavam, revelando pouco a pouco todo o grupo. Calmamente ele ia desenhando uma imagem, traçando de maneira cuidadosa cada detalhe. Ele parecia um pintor usando o negrume da noite como uma tela de pintura e sua lanterna como pincel. Era o Picasso da savana, o Michelângelo africano, o Van Gogh dos safáris.
 
Aos poucos uma bela cena ia se formando na nossa frente; cerca de quatro leoas deitadas com alguns filhotes enganchados em seu pescoço, e mais umas duas em pé com outros mini-leões correndo por todos os lados e pulando um no outro. Uma bonita cena familiar, que por alguns minutos me fez esquecer da dor de barriga. Mas isso não durou muito. A dor retornou mais forte do que antes, e minha barriga começou a se mexer como se um houvesse um terremoto acontecendo dentro dela. Terremoto não, um vulcão; um vulcão prestes a entrar em erupção. Minha atenção, que por alguns instantes tinha se voltado completamente aos animais, voltou a ficar dividida, 70% no safári e 30% na dor. Comecei a ficar ainda mais preocupado.
 
Ainda assim eu tentava me manter otimista. “Só precisa segurar mais uma hora, Pablo. Logo estaremos de volta ao acampamento. Aproveite o momento! Essa dor não é nada de mais”, eu pensava comigo mesmo, tentando, em vão, me convencer de que estava tudo bem. No fundo, eu sabia que não estava. No fundo, eu literalmente sentia que não estava. Eu já estava suando frio. Aos poucos minha atenção no safari ia diminuindo; 65%, 60%, 55%. E enquanto isso a dor ia tomando os meus pensamentos; 35%, 40%, 45%.
 
Eu sabia que não conseguiria esperar; mais cedo ou mais tarde uma tragédia aconteceria. Mas não tinha muito que eu pudesse fazer. Comecei a analisar as minhas possíveis ações e suas consequências, e vi que eu estava lascado. Sair do carro era claramente impensável, pois eu estava em frente a um grupo com alguns dos maiores predadores do planeta. Nos primeiros passos que eu desse, já conseguia imaginar vários leõezinhos pulando em cima de mim. As leoas nem se dariam ao trabalho, pois eu claramente não ofereceria nenhum risco aos seus filhotes. Não havia pra onde eu fugir, nem onde me esconder, e eu teria que correr de cu literalmente trancado para não acabar todo cagado, o que diminuiria a minha velocidade, me transformando em presa fácil. E no final isso seria inútil, pois no primeiro sinal de um leão se aproximando eu acabaria me borrando todo do mesmo jeito.
 
Uma outra possibilidade que passou por minha cabeça por alguns segundos, e que na hora me pareceu ser razoável, mas que olhando em retrospecto só me faz perceber o quão desesperado eu estava naquele momento, era a de simplesmente fazer as minhas necessidades ali mesmo no carro. Sim, eu sei que é nojento, e sim, eu sei que seria extremamente humilhante, mas estava realmente difícil segurar. Por alguns segundos eu de fato contemplei a possibilidade de cagar nas calças. Na verdade eu já estava começando a acreditar que aquela situação acabaria daquele jeito de qualquer forma, independentemente de eu decidir fazer por conta própria ou não. “O máximo que vai acontecer é o carro ficar fedendo muito”, pensei. Mas não, esse não seria o máximo que aconteceria. O estrago seria descomunal, um desastre natural. E do jeito que meu estômago se mexia, não seria como cometas sólidos caindo na terra, seria mais como uma tsunami. Escorreria por todos os lados, atingiria inocentes desavisados e espalharia um odor nunca antes sentido por aqueles que estavam comigo, odor esse que nos acompanharia até o último segundo do passeio, e possivelmente pela eternidade. No dia seguinte eu não conseguiria nem olhar para ninguém na pousada tamanha seria minha vergonha. Obviamente esse pensamento se esvaiu de minha mente com a mesma velocidade com que apareceu.

20 anos em 20 minutos

A melhor escolha provavelmente teria sido mandar um alerta vermelho para o guia e explicar que a situação estava feia. Eu poderia falar que não estava aguentando mais e pedir para sairmos dali e encontrar algum lugar perto para que eu pudesse me aliviar. O problema é que nesse caso teríamos que interromper aquele momento com os leões, e não teríamos tempo pra voltar. Acredito que o casal que estava no carro comigo entenderia a situação, mas mesmo assim eu queria evitar ao máximo essa opção, pois eu não queria atrapalhar o passeio de ninguém. Pensando de maneira clara agora, modéstia à parte, é incrível o fato de eu estar quase me defecando por inteiro e ainda conseguir me preocupar com o resto das pessoas ali. Mas a verdade é que eu também não queria atrapalhar o meu próprio passeio. Eu queria ficar vendo as leoas, e ainda tinha uma pitada de confiança de que daria tudo certo no final e eu conseguiria aguentar por mais um tempo. Como eu disse, talvez essa teria sido a coisa mais sensata, e mais óbvia, a se fazer, mas eu decidi arriscar e segurar.
 
Os próximos 20 minutos, que mais pareceram 20 anos, foram de uma batalha intensa travada entre mim mesmo e meu intestino. O nível de autocontrole necessário nessa situação era sem precedentes. Era preciso uma força mental e física quase sobre-humana para controlar meu esfíncter. E era uma batalha solitária. Eu permanecia quieto, imóvel, com medo de que qualquer movimento seria fatal. Minha atenção já oscilava entre os leões e a dor de barriga. Ora 40/60, ora 60/40. Em alguns momentos eu até quase me esquecia onde estava. Eu já conseguia sentir meu corpo encharcado de suor. E não estava tão calor assim. Depois de um tempo, a minha atenção parou de oscilar, e em poucos segundos foi a 100% na dor de barriga. Eu já tinha tirado as fotos que queria, já era o suficiente. Agora eu precisava focalizar minhas forças em segurar a bosta. Me transformei quase em um monge budista. Olhos bem fechados, em completo silêncio, estático. “Mente sobre o corpo!”, “A dor é psicológica!”, “Respira, inspira…” Eu repetia essas coisas como mantras, contando os segundos para sairmos dali. Até que finalmente minhas preces foram atendidas.
 
O motorista ligou o carro novamente, o guia perguntou “Gostaram? Incrível, né?” e disse que tentaríamos mais uma última vez encontrar o leopardo de antes, pois ele tinha recebido uma nova pista agora. Antes mesmo de o motorista dar partida eu já cutuquei o guia e perguntei se era possível fazer uma pequena pausa em algum lugar, pois eu já estava no meu limite. Ele entendeu e disse que sim, poderíamos parar, mas precisaríamos sair de perto daquela alcateia antes. Um pingo de esperança brotou em meus olhos, mas eu sabia que a batalha não estava vencida ainda. Depois de mais uns 10 minutos de carro, finalmente paramos novamente. Esses 10 minutos foram mais fáceis de aguentar, pois dessa vez eu pelo menos sabia que em pouco tempo aquele sofrimento acabaria. Foi como aquela respirada que você dá quando está próximo de terminar a faculdade, ou nos metros finais de uma maratona, ou aquele último instante no trabalho depois de um mês longo e cansativo, minutos antes de você entrar de férias, quando você diz a si mesmo “Pronto, estamos quase lá! Você já sofreu tudo isso, consegue mais alguns minutos.”
 
Logo o motorista parou e desligou o carro novamente. O guia então apontou para uma grande moita, me deu uma pequena lanterna e disse que eu poderia ir ali, que não deveria ter nenhum problema. Esse “não deveria ter nenhum problema” não é a mais tranquilizadora das frases para se ouvir no meio da selva depois de ter visto tantos animais perigosos tão de perto, mas a verdade é que naquele momento eu nem me importava. Se fosse pra morrer, que fosse pra morrer depois de ter cagado. Com um pouco de vergonha, dei a entender que precisava de algo, e acho que essa foi a primeira vez que ele entendeu que se tratava do número dois, não do número um. Ele prontamente sacou um rolo de papel higiênico de baixo do banco e me entregou. E lá fui eu desferir o último golpe da batalha, para enfim aproveitar meu momento de glória. Eu me sentia um verdadeiro herói por ter conseguido segurar até ali.

E o vulcão explodiu

E lá estava eu, em uma floresta no meio do continente africano, a não sei quantos metros de uma alcateia de leões, a não sei quantos metros de outros animais ferozes que poderiam estar ali por perto, a céu aberto, numa escuridão quase total, com exceção apenas de uma estreita faixa de luz do luar que passava por entre os galhos das árvores ao meu redor e dos pequenos pares de olhinhos que apareciam aqui e acolá, um silêncio ensurdecedor, que só não era total devido ao som do vento balançando as folhas e do chirriar das corujas levando sua vida noturna, e que era quebrado de vez em quando por barulhos estranhos que surgiam por entre as árvores vindo de direções desconhecidas, agachado atrás de uma moita, de calça arriada, papel higiênico em uma mão e a lanterna apagada na outra, e uma grande sensação de alívio. Nunca me senti tão parte da natureza, tão conectado ao meio ambiente. E nunca me senti tão vulnerável ao mesmo tempo.
 
Temos uma tendência a achar que somos seres superiores, uma espécie acima de todas as outras, que nascemos para governar o planeta e dominar os outros seres vivos que aqui estão, e fazemos questão de exercer esse nosso poder sem nos preocuparmos com as consequências. Mas, naquele momento, nada disso parecia ser verdade para mim. Eu me encontrava em uma situação de extrema vulnerabilidade. Eu estava sem proteção nenhuma, em uma posição um tanto quanto desprivilegiada, e não havia nada que eu pudesse fazer se fosse atacado. Se eu tivesse que correr eu ia parecer um pinguim dando pequenos passos com a calça no tornozelo. E eu estaria cagando e andando, literalmente. Naquele momento eu me sentia como um animal comum, igual a todos os outros por ali. Igual, não; inferior. Na cadeia alimentar, no ranking de forças, eu certamente estaria quase na lanterna, com certeza na zona de rebaixamento, pelo menos. E o pior de tudo é que o que me levou àquela situação foi algo que eu não podia controlar, algo que é intrínseco não só a nós seres humanos mas a todos os outros animais, que é a necessidade de defecar. E foi justamente esse pensamento que me fez perceber que eu sou apenas mais um animal como outro qualquer, um ser igualmente frágil controlado por sensações e necessidades inerentes à minha condição de ser vivo que não consigo explicar, apenas sentir. Somos apenas mais uma espécie de animais entre tantas outras, com as quais, por mais diferentes que sejamos, compartilhamos características cruciais à nossa sobrevivência e existência. Mas claro, toda essa análise filosófica sobre quem sou e meu lugar no universo eu só fiz depois que já estava na minha cama prestes a dormir, horas mais tarde. Naquele exato instante eu só pensava mesmo era em cagar.
 
Terminei, me limpei, enterrei o papel, levantei a calça e voltei para o carro com um sorriso no rosto. Eu poderia estar morrendo de vergonha ao voltar ao carro, mas a verdade é que nada mais importava. “Preciso falar algo para quebrar o gelo”, pensei. Se eu não falasse nada, seria pior; ficaria um ar bastante constrangedor no caminho de volta, com todo mundo sabendo o que tinha acontecido e ninguém querendo comentar nada. E eu os veria no dia seguinte, e ficaria o resto do fim de semana com a sensação de que as pessoas estariam olhando para mim e pensando “Olha lá o cagão!” Entrei no jipe e já comentei “Nossa, que alívio!”, levando o motorista, o guia e o casal de turistas aos risos. Preferi abraçar a situação e fazer piada com minha própria desgraça, fazendo as pessoas rirem comigo em vez de rirem de mim. Afinal, o que era um peido para quem já tava todo cagado?